Das minhas lembranças de infância, não são muitas as que estão registradas na casa dos meus avôs paternos, em Anápolis. Foram poucos os domingos que ficamos por ali durante toda a minha vida. O suficiente para registrar que almoço na casa da vovó tinha que ter macarronada, salada de maionese e frango ao molho. E um refrigerante que meu avô fazia buscar ou que ele mesmo trazia da venda.
Meu avô é o japonês responsável pela manutenção de nosso sobrenome exótico - Camimura. Ele mesmo, apesar de ter nome brasileiro, só é conhecido pelo "Kasuó" oriental. Aliás, seus irmãos se chamam Borgue, kasutó, Kasumi e o mais novo, Ricardo! Vai entender....
Vovô Kasuó é um japonês magro, trabalhador, obstinado e teimoso. Não conheço muitos projetos que tenha conseguido concluir, incoerentemente, mas ele sempre começa de novo e de novo e de novo. Como em todos os lugares onde ele morou, em sua casa sempre tem uma quitanda, um mercadinho, uma vendinha. No quintal, ele planta morangos, couve, alface e qualquer outra coisa que tenha espaço. Ele já criou galinhas, porcos, gatos e cachorros. Aliás, os bichos adoram o meu avô, bem como todas as pessoas que o conhecem.
Ele tem um jeito engraçado de falar e conta histórias de antigamente com uma memória surpreendente. Mas, como todo bom japonês, é um homem bravo, mas que acabou amaciando com os netos, como todo bom avô.
Meus avós são primos e, apesar deles não contarem os detalhes desse romance, sabe-se que eles foram sempre apaixonados. Minha avó, Maria, do lado português da família, teve oito filhos. Meu pai é o primogênito e, por isso, é tratado com todo o respeito e regalias que a tradição japonesa prega. Eu sou a primogênita do primogênito e, de certa forma, sinto como se admiração que eles têm pelo meu pai caísse sobre mim como uma espécie de herança.
Meu pai também é um homem sério e quando precisa puxar a orelha dos meus avós, ele sempre é chamado. Me lembro perfeitamente de nós rirmos do jeito do meu pai dizer "melhor professor que eu tive foi o pai", mas ver que era verdade.
Meu avô sempre teve um olhar decidido. Ele sabia onde queria ir e sabia o que queria fazer. Ou parecia que sabia. Não tinha medo de trabalho e suas mãos, unhas - roupas, cabelo.... - sempre estavam sujas de terra. E eu admirava o vovô que, mesmo não fazendo exatamente o que era certo, fazia o que queria.
Agora, da porta do quarto de hospital, eu o vejo sentado na cama. Soro na veia, oxigênio no nariz. Meus tios estão sentados ao redor, esperando que ele diga qualquer coisa. E ele chora. Chora porque quer ir pra casa, porque não quer ficar "suzinho", porque não quer mais ficar parado, como não é de seu feitio.
Meu pai está ao seu lado e com amargura passa óleo em suas costas para aliviar o mal estar por ficar tanto tempo deitado. Nos últimos dias, tudo o que ele tem feito é mandar chamar meu pai para tirá-lo dali, mas papai sabe que não pode, que não dá. Me assusto com o quanto o rosto de vovô está inchado. E meu pai passa as mãos pelos cabelos de seu pai e ora, pedindo a Deus por conforto.
E eu vejo os olhos do vovô Kasuó. Não são mais decididos, mas estão perdidos, demonstrando desconsolo. E me aperta o coração ver o que o câncer fez. O homem forte, lutador, está prostrado, vencido, sem capacidade sequer para tomar as próprias decisões sobre seu corpo.
Ele geme e nós trememos. E o peso cai sobre o quarto. Porque todos nós sabemos que nenhum de nós pode tomar a decisão sobre qualquer dos próximos momentos.
2 comentários:
Lindo texto. =]
Lenir
vim agradecer sua visita e deparei-me com este texto lúcido e amoroso, obrigada.
um abraço
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