quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Meu respirar


Faltou ar. Desesperadamente olhei para cima, em busca do precioso oxigênio, e me deparei como céu azul, tranquilo. Acima de mim, as garças voavam, piando e procurando alimento. O sol forte brilhou em meus olhos me fazendo franzir a testa. E nesta contemplação, me esqueci de respirar. Envolta em líquido luminescente, engasgada pela ausência da mistura vital, olhei aos lados e só contemplei o horizonte vazio.

Fechada, encalacrada, enrolada, vedada, selada. No vácuo vazio da existência sem ar. levantei os braços em agonia profunda e desespero crescente. Sobre minha cabeça se estendeu o tapete duro de gelo de uma estação desconhecida. Esmurrei a parede fria, que me impedia de voltar à vida, com a esperança ali fora, a voar com as garças.

Mas o esforço contido pela substância gelatinosa, me fez perder a força e o impacto não provocou mais do que uma micro rachadura no invólucro. Se as lágrimas escorressem pelos olhos, eu choraria.

O tempo, que de 5 segundos foi transformado em eternidade, passou a ser inimigo da minha sobrevivência. Senti que me movia, mas sem ter levantado o pé. Carregada dentro da prisão de gelo. A micro rachadura, por fim, riscou-se em arranhão profundo. Com o mover da caixa, a fenda tornou-se cada vez mais longa. Debati-me.

O sol ainda brilhava, desafiador. O vento demonstrava sua presença com forte golfadas de ar, balançando as árvores nas quais se escondiam as garças. A maresia invadia o receptáculo, trazendo o gosto de mar aos meus sentidos.

Balbuciei palavras perdidas, desenhadas pela ilusão de um novo respirar. Até que a rachadura tornou-se em espaço. Cabia-me um dedo entre a fresta. Com o pouco de força que restava, segurei as bordas com a ponta do indicador. Não era gelo, mas material transparente. A fenda cortava-me as digitais.

Com o sangue escorrendo pelos braços, alcancei a liberdade de uma mão e depois de outra. A chance de sentir o ar atravessando meus dedos me deu novo vigor para enfrentar a parede não mais tão sólida que me prendia. Com a cabeça zonza pela falta de oxigênio e a perda de sangue, empurrei meu corpo contra o vão que havia criado. Com um só golpe, livrei-me de vez da cadeia luminescente. Sentei-me, cansada, meio corpo ainda dentro da caixa. Passei a mão desesperada no rosto, tentando livrar as vias respiratórias do líquido gelatinoso.

Respirei ofegante. E por longo tempo nada fiz a não ser deixar entrar e sair o ar. Limpei os pulmões do gás carbônico. Tossi longamente, expurgando toda minha própria toxina. Até que levantei os olhos e não reconheci meu destino. O mar morria na praia e nada mais se ouvia além de seu murmúrio. E foi então que tudo foi percebido: saía de um pesadelo e invadia meu próximo sonho colorido.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Boneca de pano


Num dia 13 de janeiro, de um novo ano, o desejo de tranformação foi manifestado. Há uma semana ele vinha tomando forma e invadindo os pensamentos da boneca de pano caída no canto do quarto. Sem muita vida, nem muito enchimento, a boneca olhava a parede por um longo período do dia, imaginando se as cores que um dia seus olhos captaram ainda existiam.

Até que pela parede branca se abriu uma pequena rachadura. Do buraquinho que se formou, uma formiga saiu. Depois outra e mais outra e mais outra. A boneca as encarou com curiosidade. E por um instante pretendeu mover os olhos na direção que as formigas caminhavam, tão rapidamente e com tanta segurança.
Sabiam elas onde estavam indo? E por que estavam indo? Por que abandonaram o vão da rachadura? Por que, justo agora, resolveram se mover?

A boneca viu que o número de formigas aumentava a cada instante e logo havia um verdadeiro trânsito delas à sua frente. Mão e contra-mão, as formigas subiam e desciam pelo vão. Ficar quietas não fazia parte de sua rotina. E isso despertou o interesse da boneca.

Um tanto sem forças para se erguer do canto da parede, aquele pedacinho de pano com enchimento foi movida pela vontade de olhar para cima, de procurar outras diversões, de descobrir o mundo em que as formigas passeavam.

Não era fácil. Depois de tanto tempo sentada frouxamente no canto da parede, as pernas não tinham forças para se mover. A cabeça, quase grudada aos ombros, custava para esticar uma fibra. Se tivesse glândulas, a boneca suaria.
A primeira tentativa foi piscar os olhos e acordar do marasmo. Com algum esforço ela piscou. Sorriu e piscou de novo. Depois, girou a cabeça. Girou e olhou em todas as direções. Depois, com a vontade crescendo e a força aumentando, se impulsionou e ergueu o corpinho flácido e quase sem espuma. Se equilibrou nas pernas e deu o primeiro passo.

"Vitória!", pensou, feliz, a bonequinha. Deu outro passo, dominando o desequilíbrio. Firmou a direção e explorou cada canto do quarto. Olhou as paredes e descobriu formigas, aranhas, lagartixas e escorpiões.
Descobriu uma casa que a ninguém mais pertencia. Descobriu que fora esquecida junto ao lixo abandonado. Mas com o ânimo revigorado pela vitória da independência, escalou as caixas perto da janela, escapou pelo buraco aberto no vidro e saiu pelo jardim, pronta a conhecer o mundo que, até então, só existia na imaginação.